Em maio de 1968, a seguinte inscrição foi vista num muro de Paris:
“É doloroso ter que suportar seus chefes, mas burrice maior é escolhê-los.”
O Século das Luzes
O século XVIII – também denominado Século das Luzes – foi um período de grande efervescência intelectual e política em que se deu o desenvolvimento do iluminismo, movimento baseado na crença de que a razão humana iria finalmente emancipar o homem da superstição e do atraso, fazendo o superar as trevas da ignorância. A palavra utilizada para referir-se ao iluminismo em alemão Aufklärung (esclarecimento), o que ajuda a entender a ambição dos pensadores iluministas em explicar o mundo, “desencantando-o” de superstições e crenças irracionais.
Após o impacto das descobertas de Newton sobre o funcionamento da natureza física, diversos pensadores passaram a buscar explicações racionais ou naturais para outros fenômenos, inclusive os referentes aos seres humanos. Exemplo disso é a obra pioneira de Adam Smith, publicada no século XVIII (1776) e considerada marco de fundação da ciência econômica e do nascimento das ciências humanas.
No plano político, essa época foi marcada pela decadência do regime absolutista, especialmente na França. As propostas políticas do iluminismo, surgidas com John Locke no século anterior, eram debatidas e modificadas. Nesse contexto, destacaram-se os franceses Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755) e Diderot (1713-1784). Mas o mais original pensador francês do século XVIII talvez tenha sido Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que incorporou as ideias iluministas, criticando, porém, alguns de seus aspectos.
O mundo segundo Rousseau
Uma das características do pensamento iluminista é a valorização da natureza, não só como fonte do conhecimento, mas como local privilegiado para o exercício das virtudes humanas. Em Rousseau, essa ideia é lavada às ultimas consequências, ao se estabelecer nada menos que uma antítese entre civilização e natureza, sendo esta considerada superior. No estado de natureza, vive-se em igualdade; nele emerge a bondade humana e a felicidade plena. Rousseau afirma que o homem no estado natureza – cujo melhor exemplo é o indígena – exibe qualidades superior à do homem dito civilizado. Surge ai o mito do bom selvagem. Em uma de suas mais famosas formulações, Rousseau afirma: “o homem é naturalmente bom, a sociedade o corrompe”.
A ideia de uma separação entre estado de natureza e estado de sociedade é típica do pensamento contratualista. Porém,tanto em Hobbes como em Locke, a passagem de um estado a outro é vista como um avanço (historicamente inevitável). Rousseau mantém a separação, porém lamenta que tal passagem tenha ocorrido. Defende ter sido essa a causa da degeneração dos seres humanos, fazendo surgir violência, desigualdade e corrupção entre os homens. Para ele, nesse processo de passagem do estado de natureza para o de sociedade, o principal motivo para o afastamento em relação aos princípios naturais (e portanto, da decadência humana) foi o surgimento da propriedade privada, como se percebe na afirmação a seguir:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-los. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso tivesse gritado aos seus semelhantes: “defendei-vos de ouvir esse impostor; estarei perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!”
Por mais que a entrada no estado de sociedade seja deplorável, não há retorno possível. Ou seja, abolir a propriedade, abandonar as cidades e promover o retorno ao campo é inviável, mesmo porque a vida em sociedade trouxe a possibilidade de desenvolvimento intelectual e refinamento dos costumes. Faz-se necessário, então, um retorno à consciência natural, por meio da rejeição a um racionalismo excessivo. Segundo Rousseau, o sentimento é uma das chaves para o conhecimento, notadamente o conhecimento de si mesmo. Ao defender a primazia do sentimento sobre a razão, Rousseau assume uma posição bastante singular para sua época.
A critica ao excesso de racionalidade inclui uma visão negativa sobre a erudição livresca, isto é, sobre o conhecimento obtido apenas a partir dos livros. Segundo Rousseau, a valorização do sentimento deve caminhar lado a lado com uma tentativa de comunhão com a natureza. A preocupação com a emancipação do indivíduo que vive numa sociedade corrompida levou Rousseau a formular propostas práticas, com o objetivo de proporcionar felicidade ao homem. Essas propostas envolvem principalmente a política e a educação.
Filosofia política e educação
A principal obra política de Rousseau é o livro Do contrato social. O titulo da obra já nos dá pistas sobre seu conteúdo: trata-se da retomada do conceito de contrato – tão importante para o pensamento político iluminista –, bem como de sua discussão. No livro, Rousseau afirma-se como um defensor radical da liberdade, identificada não apenas como o direito fundamental, mas como forma de acesso à espiritualidade.
Em Locke, a garantia dos direitos dos homens (incluindo a liberdade) se daria pela criação de um governo a partir do consentimento da sociedade. Em Rousseau, o exercício da liberdade se daria por meio de um governo que é formado pelo próprio povo, e não por seus representantes: o povo é soberano, e soberania não se representa. Dessa forma, o povo não deve se submeter a um governo, mas ser parte integrante dele, reunido em assembleias, discutindo e votando as leis. Essa seria a única forma de expressão da vontade geral, fundamento da soberania popular. Nesse sentido, Rousseau resgata o conceito grego de democracia enquanto governo do povo.
Por vontade geral, Rousseau entende algo diferente daquela prática comum nos regimes chamados democráticos hoje. O resultado de uma eleição, na maioria das vezes, é a expressão de diversas vontades individuais, formando aquilo que chamamos maioria. A vontade geral, por sua vez, é diferente da mera soma das vontades individuais. O povo, enquanto coletividade forma um corpo, que é dotado de vontade própria. A reunião em assembleias para discussão teria como efeito a obtenção da vontade geral, que, em seguida, deveria ser transformada em lei.
Por trás da concepção democrática de Rousseau encontra-se a ideia de que o ser humano forma uma totalidade, e esse corpo coletivo é mais importante que as individualidades. “A vontade geral é o substrato coletivo das consciências”, afirmou no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Submeter-se à vontade geral significa ser livre, pois significa também reconhecer-se enquanto parte da coletividade. Muitos indivíduos não estariam preparados para viver num regime verdadeiramente democrático, não aceitando a vontade geral e agindo de forma egoísta. Esses indivíduos deveriam ser forçados a aceitar as deliberações da coletividade, uma vez que, segundo Rousseau, algumas pessoas precisam ser “obrigadas a ser livres”.
A crença de Rousseau em suas próprias ideias políticas era limitada pela constatação, feita pelo próprio filósofo, de que um regime fundado em assembleias participativas só funcionaria de fato em pequenas unidades políticas, ou cidades. A organização política de um grande estado nacional, que inclui várias cidades, dificulta o estabelecimento de um regime fundado na vontade geral.
Já as ideias pedagógicas de Rousseau forma apresentadas em forma romanceada no livro Emílio; nele se encontra os princípios sobre como se deve educar uma pessoa para que essa não seja corrompida pela sociedade. Orientando por um preceptor, o jovem Emílio é educado no sentido de valorizar a experiência, para que ele mesmo possa desenvolver os seus valores. Sendo o homem naturalmente bom, uma educação distante dos males da sociedade só irá despertar essa bondade.
O modelo encontrado por Rousseau para a educação foi o livro Robinson Crusoe, do inglês Daniel Defoe (1660-1731), única leitura que Rousseau recomendava para os jovens. Nesse livro a personagem principal é um náufrago que consegue sobreviver numa ilha deserta, em harmonia com a natureza, por meio do hábil emprego da razão e da criatividade, somando à experiência e à sensibilidade.
Sobre a compaixão
No já citado Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau faz referencia à compaixão, que pode ser definida como a capacidade de não permanecer indiferente ao sofrimento humano ou de qualquer outro ser vivo. De fato, cenas de violência ou de sofrimento geralmente provocam em nós reações incontroláveis. A incapacidade de tolerar o sofrimento alheio é uma das virtudes mais elevadas do ser humano e, de acordo com as concepções originais de Rousseau, não é o que nos diferencia dos animais, mas, sim, o que nos aproxima daquilo que os animais têm de mais nobre.
EXERCICIOS
1- “Não sendo o Estado ou a Cidade mais que uma pessoa moral, cuja vida consiste na união de seus membros, e se o mais importante de seus cuidados é o de sua própria conservação, torna-se-lhe necessária uma força universal e compulsiva para mover e dispor cada parte da maneira mais conveniente a todos. Assim como a natureza dá a cada homem poder absoluto sobre todos os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus, e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, ganha, como já disse, o nome de soberania.” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. de Lourdes Santos Machado. 3.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 48.)
De acordo com o texto e os conhecimentos sobre os conceitos de Estado e soberania em Rousseau, é correto afirmar.
a) A soberania surge como resultado da imposição da vontade de alguns grupos sobre outros, visando a conservar o poder do Estado.
b) O estabelecimento da soberania está desvinculado do pacto social que funda o Estado.
c) O Estado é uma instituição social dependente da vontade impositiva da maioria, o que configura a democracia.
d) A conservação do Estado independe de uma força política coletiva que seja capaz de garanti-lo.
e) A soberania é estabelecida como poder absoluto orientado pela vontade geral e legitimado pelo pacto social para garantir a conservação do Estado.
2- “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: ‘Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém!’”. (ROUSSEAU, Jean- Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1997. p. 87.)
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o pensamento político de Rousseau, é correto afirmar:
a) A desigualdade é um fato natural, autorizada pela lei natural, independentemente das condições sociais decorrentes da evolução histórica da humanidade.
b) A finalidade da instituição da sociedade e do governo é a preservação da individualidade e das diferenças sociais.
c) A sociabilidade tira o homem do estado de natureza onde vive em guerra constante com os outros homens.
d) Rousseau faz uma crítica ao processo de socialização, por ter corrompido o homem, tornando-o egoísta e mesquinho para com os seus semelhantes.
e) Rousseau valoriza a fundação da sociedade civil, que tem como objetivo principal a garantia da posse privada da terra.
3- A ideia de uma separação entre estado de natureza e estado de sociedade é típica do pensamento contratualista. Porém, tanto em Hobbes como em Locke, a passagem de um estado a outro é vista como um avanço. Qual a visão de Rousseau sobre essa passagem?
4- Compare as concepções de liberdade entre Locke e Rousseau.
Fonte: Apostila Anglo Filosofia 4 - Aula 0: O Contratualismo - Jean-Jacques Rousseau
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