quinta-feira, 5 de novembro de 2015

[Filosofia] AULA 07: DESCARTES E O RACIONALISMO

Para pensar: Alguma vez você já sonhou que estava sonhando? Ou, então, você já teve, em sonho, a sensação de estar despertando de um sonho? Nesse caso, deve-se questionar: será que podemos estabelecer critérios para diferenciar o sono da vigília? O que nos garante que a nossa percepção e o nosso entendimento sobre as coisas sejam reais?

Observe a imagem e leia o trecho que segue:
René Magritte, Golconda, óleo sobre tela, 1953.
“Surrealismo, substantivo. Automatismo puramente físico através do qual se pretende expressar, verbalmente, por escrito ou de outra forma, a verdadeira função do pensamento. Pensamento ditado na ausência de qualquer controle manifestado pela razão, e fora de quaisquer preocupações estéticas e morais.”
(André Breton, Primeiro Manifesto do Surrealismo, 1924.)

A pintura de René Magritte (1898 – 1967) – um dos principais expoentes do Surrealismo – remetenos a uma atmosfera de sonho, uma vez que nela não reconhecemos o que costumamos chamar de realidade. Os surrealistas, assim como outros artistas e pensadores do século XX, opuseram-se ao pensamento racional, valorizando o onírico, a ausência de regra, o inconsciente, o que escapa à razão. Pensavam, assim, estar elaborando uma crítica à cultura ocidental, fortemente baseada no racionalismo.
Mas o que é exatamente o racionalismo? Como se originou esse sistema filosófico tão importante e, ao mesmo tempo, tão criticado?

O racionalismo cartesiano
O pensador francês René Descartes (1596 – 1650) propôs um sistema filosófico – ou seja, um conjunto coerente de conhecimentos – que tornava possíveis respostas para todas as questões filosóficas. Antes de Descartes, na Grécia antiga, Platão e Aristóteles haviam criado sistemas que foram atualizados, na Idade Média, por Santo Agostinho (séculos IV – V) e, sobretudo, por São Tomás de Aquino (século XIII), ambos sob a influência do cristianismo. Com a verdadeira revolução científica que foi o Renascimento – e que resultou em novas formas de ver e interpretar o mundo –, surgiu a possibilidade de desenvolvimento de um novo sistema.
Os avanços espetaculares na explicação do mundo por parte das ciências naturais (que culminaram com Newton no final do século XVII) suscitaram o questionamento: seria possível atingir, no conhecimento filosófico, o mesmo grau de certeza das ciências naturais? Se o universo era descrito como um mecanismo sofisticado, cujo funcionamento parecia cada vez mais evidente para a razão humana, não poderia ocorrer o mesmo com a alma? Não haveria uma explicação completa para o funcionamento do ser humano, para além do corpo material? Qual seria a relação entre corpo e alma? Tais questões foram abordadas por Descartes.

O princípio da dúvida
O ponto de partida de Descartes na busca por um conhecimento verdadeiro foi o chamado princípio da dúvida: deveríamos desconfiar não apenas do saber passado, mas também daquilo que nos é oferecido pelos sentidos. Cada objeto do mundo material se apresenta de forma tão diversa e tão mutante diante de nós, que se torna temerário basear-se somente nos sentidos para se chegar a qualquer conclusão definitiva. Em outras palavras, deve-se duvidar de toda ideia que pode ser posta em dúvida.
A realidade percebida pelos sentidos é enganosa “e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez” (Meditações, I, 3). Além disso, nunca podemos ter certeza de estar vivendo uma experiência real ou de estar apenas sonhando. Descartes utilizou um exemplo para explicar as mutações dos objetos do mundo material: um pedaço de cera que acabou de ser retirado de uma colmeia é doce, tem ainda o perfume das flores de onde foi colhido; é duro, frio e produz um determinado som quando nele batemos. Conforme aproximamos o pedaço de cera do fogo, seu odor desaparece, sua forma e cor se modificam e ele acaba se transformando em líquido e pode esquentar até que não possamos mais tocá-lo. Ainda é cera, mas os sentidos a percebem de maneira completamente diferente. Essa percepção da natureza da cera, que se apresenta de forma tão diversa, é fruto da faculdade de entender, que se encontra dentro de cada sujeito.

“Penso, logo existo.”
Uma vez que somos capazes de duvidar de tudo e de todos, a única certeza absolutamente incontestável é justamente a nossa capacidade de duvidar. Essa capacidade é fruto da razão; portanto, a única certeza que temos, e que nos define enquanto indivíduos, é nossa capacidade de pensar. O pensamento existe, e como não pode ser separado do indivíduo, o indivíduo também existe. Essa formulação foi resumida na famosa expressão de Descartes: “penso, logo existo” (em latim, “cogito ergo sum”).
Uma decorrência dessa formulação é a crença de que o Eu pensante é mais real do que o mundo físico. Em outras palavras, a formulação que funda todo o conhecimento verdadeiro tem origem metafísica (ou seja, está além da física): trata-se da descoberta da alma por si mesma. Assim, a expressão “eu sou, eu existo” é necessariamente verdadeira e incontestável a partir do momento em que foi enunciada. Ela é verdadeira porque existe um sujeito pensante capaz de dizê-la.
Da mesma maneira que o homem pode conceber a si mesmo, ele também pode conceber deus, e esta seria uma prova de sua existência: se concebemos um ser perfeito, ele necessariamente existe, uma vez que não existir seria uma imperfeição. É por isso que a existência das coisas guarda relação com a proximidade que elas têm do pensamento. Dessa forma, a existência dos objetos materiais – por exemplo, uma mesa, uma cadeira (mas também o sol ou a lua) – não seria comprovada pela forma como os percebemos pelos sentidos, mas pelo fato de possuírem propriedades quantitativas que podem ser medidas e expressas racionalmente em relações matemáticas, como comprimento, largura, altura. Deus, o ser perfeito, não nos engana: ele é a garantia de que as relações matemáticas do mundo material correspondem a coisas concretas.

O método racional
Descartes dedicou-se ao estudo das relações entre as formas, no campo da geometria (você deve conhecer o sistema de coordenadas cartesianas). A matemática, que decompõe problemas complexos em partes menores e os resolve um de cada vez, era vista por Descartes como exemplo de método racional.
Da mesma maneira que os complexos problemas da matemática, os objetos materiais (ou seja, aqueles que têm extensão, que ocupam espaço) também podem ser decompostos em partes menores, mas a alma (ou o pensamento) não: uma vez que é consciência pura, não ocupa lugar no espaço.
Mesmo reconhecendo que o homem é um ser duplo – ao mesmo tempo corpo e alma, ou seja, extensão e consciência –, Descartes instaurou a separação entre matéria e pensamento. Sendo assim, o sujeito consciente se opõe ao objeto, àquilo que é conhecido. Descartes foi o fundador da Filosofia do Eu ou Filosofia do sujeito, segundo a qual todo conhecimento é visto como originário de uma elaboração individual.
O pensamento de Descartes retoma a tradição do racionalismo, cujas origens remontam a Platão e que se funda na ideia de o saber se originar na razão, que antecede e explica todo o real. Tal concepção teve profunda influência no pensamento filosófico ocidental, embora questionada, ainda no século XVI, pela escola do empirismo, que estudaremos na próxima aula.

Exercícios
1. “É de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez”.
(Descartes, Meditações.)

a) A afirmação de Descartes se refere a uma ideia que é ponto de partida de seu pensamento. De que se trata?
b) A que outro importante pensador essa ideia remete?

2. Segundo Descartes, qual nossa única certeza? 3. Qual a principal característica do método racional?

Tarefa mínima
Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra parte, não pedia mais que um ponto que fosse fixo e seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz, para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável. Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta [cheia] de mentiras me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a figura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções do meu espírito. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo. Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus, ou alguma potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito, no entanto, pois que segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns: não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisso e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.
(René Descartes, Meditações metafísicas.)

No início do texto, Descartes afirma que Arquimedes necessitou de um ponto fixo e seguro para transportar o globo terrestre para outra parte. Qual o “ponto fixo” encontrado por Descartes para sustentar seu pensamento?

Tarefa complementar
René Magritte, O princípio do prazer (Retrato de Edward James), óleo sobre tela, 1937.
Como vimos, os surrealistas criticaram a primazia do pensamento racional nas sociedades ocidentais e defenderam a importância do sonho e da ausência de controle.
A postura desses artistas, bem como a de muitos outros críticos do racionalismo, é bastante compreensível, uma vez que a razão humana, apesar de muito importante, não é o único aspecto que nos diferencia e nos ajuda a atuar sobre a realidade. A imaginação, as emoções, a sensibilidade são características humanas que têm sua função específica e não deveriam ser vistas como “inferiores” à razão. 

Qual sua opinião sobre isso? Você acha que a razão é mais importante do que as emoções ou a imaginação? Procure justificar sua resposta.

Leitura complementar

A ideia moderna de razão

Em seu livro História da Filosofia, Hegel declara que a Filosofia moderna é o nascimento da Filosofia propriamente dita porque nela, pela primeira vez, os filósofos afirmam:
1) que a Filosofia é independente e não se submete a nenhuma autoridade que não seja a própria razão como faculdade plena de conhecimento. Isto é, os modernos são os primeiros a demonstrar que o conhecimento verdadeiro só pode nascer do trabalho interior realizado pela razão, graças a seu próprio esforço, sem aceitar dogmas religiosos, preconceitos sociais, censuras políticas e os dados imediatos fornecidos pelos sentidos. Só a razão conhece e somente ela pode julgar-se a si mesma;
2) que a Filosofia moderna realiza a primeira descoberta da Subjetividade propriamente dita porque nela o primeiro ato do conhecimento, do qual dependem todos os outros, é a Reflexão ou a Consciência de Si reflexiva. Isto é, os modernos partem da consciência da consciência, da consciência do ato de ser consciente, da volta da consciência sobre si mesma para reconhecer-se como sujeito e objeto do conhecimento e como condição de verdade. A consciência é para si mesma o primeiro objeto do conhecimento, ou o conhecimento de que é capacidade de e para conhecer;
3) que a Filosofia moderna é a primeira a reconhecer que, sendo todos os seres humanos seres conscientes e racionais, todos têm igualmente o direito ao pensamento e à verdade. Segundo Hegel, essa afirmação do direito ao pensamento, unida à ideia de liberdade da razão para julgar-se a si mesma, portanto, o igualitarismo intelectual e a recusa de toda a censura ao pensamento e à palavra, seria a realização filosófica de um princípio nascido com o protestantismo e que este, enquanto mera religião, não poderia cumprir, precisando da Filosofia para realizar-se: o princípio da individualidade como subjetividade livre, que se relaciona com o infinito e com a verdade.
(…)
A primeira intuição evidente, verdade indubitável de onde partirá toda a Filosofia moderna, concentra-se na célebre formulação de Descartes “Penso, logo existo” (Cogito ergo sum). O pensamento consciente de si como “Força Nativa” (a expressão é de Espinosa*), capaz de oferecer a si mesmo um método e de intervir na realidade natural e política para modificá-la, eis o ponto fixo encontrado pelos modernos.
(Marilena Chauí, Aspectos da História da Filosofia.) * Filósofo que viveu no século XVII (1632 – 1667).

O que significa o trecho: “a consciência é para si mesma o primeiro objeto do conhecimento”?

Fonte: Apostila Anglo Filosofia 4 - Aula 07: Descartes e o Racionalismo

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