A partir do século XVIII, a propriedade privada tornou-se um dos temas mais discutidos pelos pensadores. Para alguns, ela é a principal responsável pelas desigualdades entre os homens. Outros, porém, consideram-na legitima.
Você consegue imaginar em que circunstancias uma pessoa pode se dizer proprietária de um objeto? Que critérios você usa para afirmar que determinado objeto é seu?
As origens do liberalismo
O inglês John Locke (1632-1704) foi um dos expoentes do empirismo. Afirmou não existirem ideias inatas, defendendo que elas nos surgem primordialmente por meio da experiência. Além disso, foi contemporâneo de grandes agitações políticas na Inglaterra do século XVII e costuma ser considerado um dos ideólogos do movimento político de 1688-89 conhecido como Revolução Gloriosa. Suas ideias, de grande importância para a História do Ocidente, lançaram as bases do liberalismo.
Encontramos em Locke várias afinidades com o pensamento de Thomas Hobbes entre elas: a valorização do individualismo, a ideia de separação entre estado de natureza e estado de sociedade, o conceito de contrato social. Porém há diferenças significativas entre os dois pensadores: se as ideias de Hobbes podem ser utilizadas para justificar regimes autoritários (como o absolutismo), o pensamento de Locke o levou a idealizar regimes políticos que se aproximam do que hoje costumamos chamar de democracia.
A passagem do estado de natureza para a sociedade civil
Em suas principais obras – Segundo tratado sobre o governo civil e ensaio acerca do entendimento humano --, Locke afirmou que os homens viviam, originalmente, em estado de natureza. Nesse estado vigora a lei natural, que garante a cada indivíduo uma série de direitos irrenunciáveis, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade. Segundo Locke, o estado de natureza é marcado pelo predomínio da razão; nele os homens vivem em perfeita liberdade: não há subordinação a nenhum tipo de autoridade, nem obediência – exceto aquela devida à lei natural. Nesse sentido, a vida no estado de natureza significa uma igualdade radical. Observa-se aqui uma diferença marcante em relação ao pensamento hobbesiano: se, para Hobbes, o estado de natureza era a “guerra de todos contra todos”, para Locke era uma espécie de “paraíso perdido”, em que qualquer eventual transtorno poderia ser resolvido pelos próprios indivíduos, uma vez que “a lei natural está inscrita no coração dos homens”.
Um dos aspectos dessa igualdade radical seria o livre acesso de todos os homens aos bens da natureza, encarados como propriedade comum a todos os homens. Porém, apesar do predomínio da propriedade comum, Locke observa que todo homem é dono de seu agir e, portanto, responsável por seus atos e por suas obras, incluindo o trabalho. Na medida em que transforma este ou aquele objeto da natureza por meio do trabalho, o homem acaba por constituir propriedades particulares. As árvores são de todos, mas se este objeto de madeira, que eu fiz com minhas mãos para meu uso, é meu. A água dos rios é de todos, mas a água que eu recolhi e coloquei nesse jarro passou a ser minha.
Segundo Locke, no estado de natureza há limites para o estabelecimento da propriedade privada: um indivíduo só pode constituir a propriedade daquilo que for efetivamente utilizar, ou seja, ele não pode negar o acesso de outros indivíduos à natureza. Não posso pretender ser o dono de toda a água do rio, assim como não posso ter mais terra do que sou capaz de cultivar. Abusos em relação a esses limites podem colocar em risco a vida no estado de natureza.
Além desse, outros fatores inviabilizam a vida no estado de natureza, dentre eles o crescimento da população – que, mais cedo ou mais tarde, leva à escassez de recursos naturais – e a invenção do dinheiro – que torna mais complexa a atividade econômica e possibilita a acumulação. Assim, a desigualdade passa a marcar a vida dos homens, e os atritos se multiplicam. Em última análise, o próprio exercício dos direitos naturais se vê ameaçado.
Nesse contexto se deu a passagem do estado de natureza para a sociedade civil ou política. Para preservar seus direitos e construir instâncias adequadas para o exercício da justiça, os homens criaram o Estado, responsável pela defesa da vida, da liberdade e da propriedade. Os indivíduos aceitam o poder do governo do Estado que, por sua vez, representa os interesses individuais de cada um. Assim, o exercício da justiça será feito pelo governo em benefício de todos; as leis serão criadas de acordo com a vontade de todos. A expressão dessa vontade se dará pela maioria, como disse Locke: “Quando quaisquer números de homens consentiram desse modo em formar uma comunidade ou governo, são, por esse ato, logo incorporados e formam um único corpo político, no qual a maioria tem o direito de agir e deliberar pelos demais”.
O contrato
Segundo Locke, o Estado se funda na confiança que os indivíduos nele depositam, e o poder dos governantes se fundamenta no consentimento dos governados. É nesse sentido que Locke propôs uma releitura do contratualismo pensado originalmente por Hobbes. Se, em Hobbes, pode-se dizer que o contrato se estabelecia entre os membros da sociedade, no sentido de aceitar o poder do governante, em Locke, pelo contrário, se estabelece o contrato entre governante e governados, que só aceitam o poder do governante se este cumprir a vontade de todos, garantindo os direitos individuais.
A confiança entre governante e governados pode ser quebrada, ou seja, um governante pode usurpar o poder que a sociedade lhe conferiu. Nesse caso, o governante teria rompido o contrato e, segundo Locke, a sociedade não teria mais por que mantê-lo no poder. Escreveu Locke: “Sempre que tais legisladores tentarem violar ou destruir a propriedade do povo ou reduzi-lo à escravidão sob um poder arbitrário colocar-se-ão em estado de guerra como o povo, que fica, a partir de então, desobrigado de toda obediência”.
Há, na concepção de contrato de Locke, um principio revolucionário, segundo o qual os indivíduos de uma sociedade podem, em certos casos, substituir um governante que não cumpre seus deveres, inclusive por meio da força. Trata-se do direito à resistência, que legitima a revolução.
Ressalte-se a especificidade do termo revolução para Locke. Essa palavra, utilizada pela astronomia para se referir ao movimento dos corpos celestes – a Terra faz revoluções em torno do Sol, ou seja, dá voltas regulares, retornando ao ponto de partida após certo intervalo de tempo —, foi utilizada por Locke para descrever a substituição de um governante inadequado por outro mais afinado com a vontade dos indivíduos. Com isso o pensador quis dizer que tal substituição não seria uma grande ruptura, mas o retorno a uma situação inicial, ou seja, a volta àquela situação que deu origem ao surgimento de todos os governos: a proteção dos indivíduos que formam a sociedade e a garantia de seus direitos.
O impacto dos escritos de Locke em sua época foi grande. Suas ideias influenciaram fortemente a Filosofia política iluminista que por sua vez, justificou movimentos como a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos. Como já dissemos, suas terias influenciaram o desfecho da Revolução Gloriosa na Inglaterra, em seu projeto de derrubada do rei absolutista e na criação de mecanismos de controle e limitação do poder do governante (parlamentarismo).
O legado
Locke costuma ser considerado o “pai do liberalismo”, movimento político que deu origem às práticas políticas predominantes, desde a Revolução Francesa, até os dias de hoje. Um dos legados do pensamento de Locke na prática política contemporânea é a ideia de que a função do Estado é garantir os direitos naturais dos indivíduos. Além disso, a realização de eleições, que normalmente são associadas ao exercício da democracia, reflete o princípio de que o governo deve surgir a partir da vontade da maioria. De fato, a Constituição Brasileira de 1988 traz em seu artigo 1º: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos direta ou indiretamente”. A separação entre os poderes Legislativo e Executivo, característica dos regimes liberais, também foi proposta originalmente por Locke, que afirmava a necessidade de subordinação do Executivo ao Legislativo, ou seja, o governante não pode agir livremente, mas deve ter seu poder limitado pelas leis que emanam do povo.
Além disso, as concepções de Locke sobre o trabalho humano e a forma como este acrescenta valor a objetos da natureza foram retomadas pela nascente ciência econômica e influenciaram pensadores diversos.
Se, por um lado, as ideias políticas de Locke podem servir como princípios para resistir à opressão, por outro, todo seu sistema se funda na valorização da propriedade e no desejo de preservá-la. Diversos comentadores observaram posteriormente que a ênfase de Locke na propriedade acaba por esvaziar qualquer possibilidade real de igualdade, esse, sim, um direito fundamental do homem. Dentre os seus críticos, um dos mais ferozes foi o francês Jean-Jacques Rousseau.
EXERCÍCIOS
1- “A liberdade natural do homem deve estar livre de qualquer poder superior na terra e não depender da vontade ou da autoridade legislativa do homem, desconhecendo outra regra além da lei da natureza. A liberdade do homem na sociedade não deve estar edificada sob qualquer poder legislativo exceto aquele estabelecido por consentimento na comunidade civil...”
(LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o governo civil. Trad. de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis, RJ:Vozes, 1994. p. 95.)
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o tema da liberdade em Locke, considere as seguintes afirmativas:
I. No estado civil as pessoas são livres porque inexiste qualquer regra que limite sua ação.
II. No estado pré-civil a liberdade das pessoas está limitada pela lei da natureza.
III. No estado civil a liberdade das pessoas edifica-se nas leis estabelecidas pelo conjunto dos membros dessa sociedade.
IV. No estado pré-civil a liberdade das pessoas submete-se às leis estabelecidas pelos cidadãos.
Quais das afirmativas representam o pensamento de Locke sobre liberdade?
a) Apenas as afirmativas I e II.
b) Apenas as afirmativas I e IV.
c) Apenas as afirmativas II e III.
d) Apenas as afirmativas II e IV.
e) Apenas as afirmativas III e IV.
2-“Se todos os homens são, como se tem dito, livres, iguais e independentes por natureza, ninguém pode ser retirado deste estado e se sujeitar ao poder político de outro sem o seu próprio consentimento. A única maneira pela qual alguém se despoja de sua liberdade natural e se coloca dentro das limitações da sociedade civil é através do acordo com outros homens para se associarem e se unirem em uma comunidade para uma vida confortável, segura e pacífica uns com os outros, desfrutando com segurança de suas propriedades e melhor protegidos contra aqueles que não são daquela comunidade”. (LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Trad. de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis: Vozes, 1994. p.139.)
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o contrato social em Locke, considere as afirmativas a seguir.
I. O direito à liberdade e à propriedade são dependentes da instituição do poder político.
II. O poder político tem limites, sendo legítima a resistência aos atos do governo se estes violarem as condições do pacto político.
III. Todos os homens nascem sob um governo e, por isso, devem a ele submeter-se ilimitadamente.
IV. Se o homem é naturalmente livre, a sua subordinação a qualquer poder dependerá sempre de seu consentimento.
Estão corretas apenas as afirmativas:
a) I e II.
b) I e III.
c) II e IV.
d) I, III e IV.
e) II, III e IV.
3- “[...] é preciso que examinemos a condição natural dos homens, ou seja, um estado em que eles sejam absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas como bem entenderem, dentro dos limites do direito natural, sem pedir autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade.” (LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o governo civil. Trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 83.)
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o estado de natureza em Locke, é correto afirmar:
a) Os homens desconhecem a noção de justiça, pelo fato de inexistir um direito natural que assegure a ideia do “meu” e do “teu”.
b) É constituído pela inimizade, maldade, violência e destruição mútua, características inerentes ao ser humano.
c) Baseia-se em atos de agressão física, o que gera insegurança coletiva na manutenção dos direitos privados.
d) Pauta-se pela tripartição dos poderes como forma de manter a coesão natural e respeitosa entre as pessoas.
e) Constitui-se de uma relativa paz, que inclui a boa vontade, a preservação e a assistência mútua.
4- Assim como Hobbes, John Locke também é um contratualista e um pensador da Filosofia política. Quais as principais semelhanças e diferenças de seus pensamentos?
5- Segundo Locke, como ocorre a passagem dos estado de natureza para o estado de sociedade? Quais os motivos apontados por ele?
Fonte: Apostila Anglo Filosofia 4 - Aula 20: O Contratualismo - John Locke
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